quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Para Dona Nenê

O interfone toca. São 2 da manhã. Diabos. É o porteiro pedindo para que eu chamasse uma ambulância para Dona Nenê do 71. Eu nem me lembrava quem era Dona Nenê, não conheço ninguém do prédio, e que bela maneira de se conhecer uma vizinha. Mas o que ela tem? Não sei, a moça que trabalha lá está sozinha e precisa de ajuda. Ligo pro 102 por não saber o telefone para emergências, que não é como o 911 embutido na cabeça dos americanos e das pessoas do mundo inteiro de tal modo que não sabemos o número de emergência do nosso próprio país. 192. Serviço de atendimento móvel de urgência bom dia, Minha vizinha está passando mal e precisa de uma ambulância; Senhora, não podemos enviar uma unidade sem saber o que ela tem.


Subo ao 7º andar, toco a campainha e uma mulher de cabelos tingidos de loiro claríssimo e olhos pintados atende a porta. Obrigada pela ajuda, estou sozinha, entre. No corredor uma senhora muito senhorinha deitada no chão, quase desfalecida, gemendo, com os lábios azuis, perguntando quem está aí, quem está aí. É a menina do térreo, dona Nenê. 192. Serviço de atendimento móvel de urgência bom dia; Estou aqui com uma senhora que está muito mal, perdeu a consciência por alguns minutos, por favor, venham rápido, é urgente. Então ri da minha última frase. Desculpe, todos os pedidos de ambulância são urgentes.

Lembrei-me de dona Nenê. Ela já era muito velha quando eu me mudei pro prédio em 85. Ela era uma das senhoras que implicavam com a turma brincando na portaria, mas não demos a ela um apelido, como havia a bruxa do 92, a bruxa do Escort vermelho, e assim por diante. Por algum tempo indefinido eu fiquei ali, absorta num lapso do tempo, eu aos 5 anos de idade. Eu sempre volto aos 5 anos de idade.

Dona Nenê quis se levantar para ir ao banheiro, ainda que sua enfermeira insistisse que não havia necessidade. Dona Nenê, a senhora está de fraldão. Mas mesmo com todos os enjôos e dores e fraquezas dona Nenê quis sentar-se a privada. É seu direito. Pois muito bem, ela conseguiu. Elidia, a enfermeira, pediu para que eu a amparasse enquanto ela trocava de roupa. E dona Nenê seguiu perguntando Quem é ela? Quem é ela? É a menina do térreo.

Sentei-me ao seu lado. Dona Nenê frágil, defecando, enjoada, tendo ânsias, querendo botar pra fora toda a sua idade. Ela não conseguia parar sentada e tudo o que pude fazer foi abraçá-la, Apóie-se em mim, respire fundo, fique tranqüila (eu não sei se vai ficar tudo bem, não posso fazer muito pela senhora, mas apóie-se em mim, isso eu posso fazer). Sinto sobre mim toda a debilidade que a nossa carcaça representa, a efemeridade da carne, a pele flácida e enrugada, os ossos fracos, o lento fechamento dos órgãos. Tudo isso tem um cheiro especial, que não é ruim mas me bota um tanto de medo porque sei que um dia vou cheirar assim e isso vai representar o encerramento do meu próprio corpo.

Fiquei ali esperando a ambulância, meditando sobre a situação, sentindo meus ossos firmes, pensando que ainda tem um pouco de tempo pro tempo me alcançar, olhando pela janela e vendo a chuva cair. 16ºC. A morte manda um alô numa noite fria.

Quando os paramédicos chegaram, dona Nenê se animou. Estava um tanto melhor. Ir para o hospital parecia ser um evento esperado, uma mudança de ares, um afago. Já falou que sou sócia do Beneficência Portuguesa? Sim, vamos levá-la para lá. Vejo a carteirinha, ela é sócia desde 1932. E sua data de nascimento revela que dona Nenê completará 100 anos no dia 31 de maio deste ano.

Exames costumeiros de pressão, freqüência cardíaca, glicemia. Está tudo bem. Dona Nenê pede um pente, arruma seus cabelos lindamente brancos e diz: “Já está na hora de morrer. Sabe por quê? Eu já não enxergo mais”. Fez uma pausa como se pensasse não valer a pena dizer todas as coisas que já não consegue mais. Está na hora de morrer.

Descemos. Dona Nenê ainda sem saber quem eu sou, me agradece com os olhos doces. Vejo a ambulância ir embora. 100 anos não podem caber dentro de um corpo tão pequeno. Foi o que ela disse nesta breve troca de olhares: eu já não caibo mais em mim.


por Cassandra, maio de 2007


Para Dona Nenê, in memorian.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008



Foi o chão que acolheu quando eu perdi meu corpo, quando os dragões dançavam, quando eu pedia silêncio. Foi o chão, que respirava e pulsava, que acolheu. E a grama, e as formigas, e a casca da árvore. Cabeça colada no chão. Preciso lembrar, preciso lembrar. Aterrar.


por cassandra

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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A experiência radical da dor celular

Experiência radical da dor celular que passeia por cada buraco – a matéria é feita de espaço, o que arde e lateja são os vazios. Transformar-se na dor, e nunca negá-la. Fundir-se integralmente, trazer à superfície todas as outras angústias ocultas para que festejem juntas, sem distinção, desde a dor das fibras corpóreas às dores do espírito.


por cassandra

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008



a necessidade do pulo. sem ver que altura é, se lá embaixo é pedra, se é rio, se são pregos. mas o vôo, a respiração e o coração que mudam o passo, o vento. é essa a necessidade.
por cassandra

domingo, 27 de janeiro de 2008

#dos suspiros intravenosos

Esperava em posição fetal, amuada, com a pele salgada, os olhos sangue, o coração chumbo e uma maçã-veneno no estômago. Esperava a campainha que nunca tocava. Esperava um hoje doce, uma alma nova para se encantar, uma boca que tivesse em seu interior uma orquestra imensa que lhe tocasse Stravinsky ou Gershwin ou Piazolla. Tati Quebra-Barraco também serviria. Pensou em ligar para o 102 e pedir o telefone do disk-coragem ou do disk-saída de emergência. Pagaria o serviço à vista, com um grito-redenção de mulher insone e sairia finalmente de seus lençóis saturados com o cheiro de um anteontem triste

por cassandra

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

dia 20/01

a bad do atropelamento. é um sinal.